Paris, 20 de Maio de 1968
Querida mãe,
Como tem passado? Como vão o paizinho e os meus irmãos? E a avó Zulmira? Sempre com a boa disposição do costume?
Comigo está tudo bem. Estou a escrever-lhe de Paris onde me instalei há seis meses, desde que parti para o exílio. Lamento não ter dito nada antes, mas receava que as minhas cartas fossem interceptadas pela PIDE e que isso viesse a causar-lhes problemas. Mas agora não consegui apartar mais as saudades e decidi arriscar, desejando do fundo do coração que esta carta chegue ao destino e vos vá encontrar de boa saúde.
Alguma novidade da nossa terra? Pergunto com esperança, mas estou absolutamente convicta de que não aconteceu nada de novo. O Salazar continua agarrado ao poder como o mesmo entusiasmo de há trinta anos, o povo está cada vez mais na miséria e os nossos homens continuam a morrer na guerra de África.
Às vezes pergunto-me se isto alguma vez vai mudar, se algum dia poderei regressar à minha Pátria e encontrá-la um país Democrático e em Paz. Um país onde todos sejam livres de dizer o que pensam e sentem e não se derrame mais o nosso sangue por uma causa em que não acreditamos.
Falam em Deus, clamam por Deus, mas se ele existe, não sei onde está que não derrama a sua bênção sobre a nossa pobre terra aflita, atrasada e embrutecida pela crueldade de um poder obtuso e mesquinho, que nos vota ao esquecimento e castiga os que sonham em libertar o país.
Portugal não mudou, mãezinha. Estou certa de que tudo continua exactamente no mesmo marasmo que aí deixei. Mas de França não se pode dizer o mesmo. Este mês tem sido de uma enorme confusão em todo o pais, especialmente aqui em Paris que é onde me encontro. Os Estudantes de Nanterre revoltaram-se, liderados por um rapaz irónico e insolente que enfrentou um Ministro e um polícia duas vezes maior que ele. Chama-se Daniel Cohen-Bendit, mas é conhecido por Dany.
A mãe não sabe, mas ele tem conseguido pôr tudo em polvorosa! Tomaram a Universidade de Nanterre, ocuparam a reitoria, suspenderam as aulas e boicotaram os exames. O governo mandou vir a CRS com cacetes e granadas de gás lacrimogéneo, mas nem assim acabou com a revolta. Pelo contrário, ainda a piorou. Na verdade, este movimento que começara a 22 de Março com os estudantes de Nanterre, estendeu-se à Universidade de Sorbone e a todo o país.
Pelas paredes, surgiu uma infinidade de slogans, do género «É proibido proibir», «Toma os teus desejos por realidade» e ou «Não confies em ninguém com mais de trinta anos».
Os estudantes estão em êxtase, e com a sua utopia querem romper os espartilhos da sociedade massificada do pós-guerra, derrubando o «Conservadorismo Burguês». Clamam por um Novo Mundo que dizem estar a nascer, querem uma sociedade mais justa e mais aberta e no fundo, fazem tremer o poder instituído e o Presidente De Gaulle.
A 1 de Maio os trabalhadores juntaram-se à luta, e os sindicatos organizaram com as Associações de Estudantes, manifestações gigantescas e greves que têm paralisado o país. O governo reage com a força da CRS, a repressão das matracas e dos gás lacrimogéneo. Mas o povo não desiste! Na noite de dez de Maio ergueram-se barricadas na cidade e os manifestantes responderam aos ataques da polícia com paralelos da calçada. Apesar das dezenas de feridos, ninguém deu parte de fraco e o Poder sentiu a força do Povo!
No dia 13, dia da Greve Geral, mais de 600 000 manifestantes desfilaram nas ruas de Paris, indiferentes à repressão dos CRS, gritando palavras de ordem contra o General De Gaulle e o governo de Pompidou. O poder está nas ruas e a revolta parece agora impossível de controlar-se.
O Presidente da República chegou anteontem de uma visita de Estado ao estrangeiro, e, ao que tudo indica, prepara-se agora para reagir. Mas o povo está unido e mobilizado, não vai desistir facilmente. Quem sentiu na pele a força bruta das matracas do corpo de intervenção não desiste ao primeiro embate!
Paris da segunda metade do século XX, parece de novo invadida pelo espírito anárquico da Revolução Francesa, e os gritos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, partem dos corações oprimidos contra uma Bastilha ideológica, refugiada no Eliseu.
Sei que estou a divagar, mãezinha. Danton, Robespierre, não lhe dizem nada. Mas eu sinto-os como os ecos de uma revolução inacabada, que há de varar o Mundo. E vejo, na nossa Pátria adormecida, os clamores de apoio ao Cohen-Bendit que vai destronar o Regime.
Salazar, é feito de sal e azar, como disse Pessoa. E o azar em que mergulhou o nosso país há de sucumbir aos clarins de guerra que anunciam a revolução e a Nova Era. De Paris para o Mundo, sinto um grito de liberdade que atravessa a História, quebra os estereótipos e a tirania e devolve as Nações ao Futuro.
Nos slogans de Maio, nos gritos eufóricos dos estudantes, nova gerações de progresso, vejo a repulsa do Homem à submissão barata e à exploração mental e ideológica. E como os obreiros de Maio, de paralelo em punho, contra as matracas, vejo-me cercada dos meus camaradas, nas ruas de Lisboa até S. Bento, entrando de rompante para destronar o tirano.
Sou utópica, sonhadora, idealista, tudo isso de que me acusava quando me viu a fugir dos “senhores da noite”, de olhos postos na sombra à procura de prezas, predadores da palavra, carcereiros do pensamento e da ideia alheia. Mas é do sonho que parte a realidade. É o sonho de um Portugal livre que a Democracia se vai construir, e por vontade de Deus que vela a nossa Pátria adormecida.
Como diria Pessoa: “Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce”.
(escrito em 08/05/05